quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A rachadura e a teia

O celular toca. Estou no meio de uma reunião com o chefe e com as outras coordenadoras, ele falando e nós prestando atenção. Desculpe, é minha filha, só um instantinho, sorrisinho amarelo, ligação de casa eu sempre atendo, essas coisas. “Mãe?” E eu sussurro: “Fala filha, tô em reunião.” E a menina, de novo: “Ainda tô com dor de cabeça. Onde você deixou o remédio?” Complicou. Remédio, remédio... “Tá em cima do toca-disco, na sala. Beijo, preciso desligar.” “Espera, esperaí. Ah, tá, depois eu falo. Não, melhor falar logo: o violão rachou.” Melhor falar logo? E logo isso? Assim, de repente? Foi soco no estômago seguido de silêncio absoluto. Todos os sons sumiram no vazio do abismo aberto pela rachadura anunciada. O meu velho Gianini rachado?! Dor no coração. Raiva, tristeza, o rosto do meu avô quando me deu o instrumento. Como vou superar isso? Calma, calma, melhor não falar nada... “Rachou?! Como assim?!”, deixei escapulir, teve jeito não. “Sei lá mãe, eu juro que não deixei cair nem nada, não sei o que aconteceu.” Inspira, expira. Inspira, expira. De novo. “Tudo bem, quando eu chegar, vejo o tamanho do estrago. Preciso ir. Beijo.”
O dia passa rápido e logo vem a noite. Faço hora para ir para casa, quero ver rachadura nenhuma não. Comento o infortúnio com os colegas, conto a história do violão. Ganhei do meu avô quando tinha nove anos. Lembro bem, foi no Natal. E eu de imediato me apaixonei pelo instrumento. Costas e braço em castanho escuro laqueado, frente num belo degradê de tons marrons, a claridade do caramelo no meio se transformando no mesmo castanho das costas ao chegar nas bordas. Um círculo de arabescos coloridos e muito delicados em volta do buraco central. Cordas em nylon, como devem ser as cordas do iniciante, ajuste perfeito no corpo. Era meu. E lindo. E meu avô querido sorria. Nunca na vida encontrarei outro parecido. Ele é mesmo único em beleza e em tudo o que encerra de lembranças. Tomei aulas, aprendi pouco, mas o suficiente para tocar cá meus acordes. Desde então, o violão, mais do que a música, trazia-me consolo e refúgio, pois nunca fui de amigos. Eu tinha (talvez ainda tenha...) um mundo interno hermeticamente fechado cujas janelas abria raramente e para poucos. Minha frenética produção poética da época e minhas medíocres aventuras musicais com meu Gianini eram as únicas lufadas de ar para as quais minhas quase sempre fechadas janelas se escancaravam, deixando exposto às suas ventanias o meu verdadeiro eu.

Por aí dá para ter uma ideia de como eu me senti nessa noite. Oito horas da noite. Mais do que hora de ir embora. Vamos lá. E alguém se despede: “Olha, tem uma loja na Gomes Freire que conserta instrumentos. É a única loja de instrumentos musicais da rua. Fica logo no começo, no quarteirão entre a Visconde de Rio Branco e a rua do Senado. Meu irmão mandou consertar o violão da minha sobrinha lá.” Será mesmo? Mas e o nome da loja? Bem, precisa não, procuro na internet, pode deixar, vou indo, não se incomode não, se Deus quiser vai dar pra consertar etc...

Chego em casa, finalmente. Antes mesmo de olhar a vítima, faço prometerem sinceridade a empregada, o caçula e a mais velha. Quem afinal deixou o violão cair? Ninguém, claro. No quarto, apoiado à parede, em pé, cordas voltadas para a frente, o violão me fita como se me fazendo uma reverência. O braço, rachado pela tensão das cordas aliada à posição ingrata, pende tristemente para frente. Finalmente, convenço-me de que ninguém o derrubou mesmo. O Tempo fez bem o seu trabalho contando com a ajuda de uma dose de desleixo adolescente e da grande variação de temperatura da semana. Um violão de quase quarenta anos e sem um probleminha de coluna, mas, afinal, o que eu estava pensando? Estava na hora. Recolhi a escala que se havia descolado e jazia no chão como uma ripa inútil, fitei com pena a madeira rachada do braço e coloquei a viola no saco, literalmente. No sábado, vejo o que poderei fazer do pobre. Agora estou cansada demais para pensar.

Mais tarde, antes de ir dormir, constato com uma rápida consulta a mapas virtuais que a tal loja de instrumentos musicais havia sido apontada de forma precisa pela minha colega de trabalho, mas acabei descobrindo outro lugar, na mesma rua, especializado em consertos de instrumentos. Não uma loja, mas uma sala, num prédio um pouco mais à frente da tal loja, no quarteirão seguinte da Gomes Freire. Repasso a rota de carro até lá: Praia do Flamengo, Arcos da Lapa, Rua do Lavradio. Parece que dá para parar na rua do Senado e andar até encontrar a loja, ótimo. Que maravilha essa internet... Agora era só levar o enfermo até lá e rezar para ele ter jeito.

A semana acaba e amanheço no sábado. Já passa das oito e a menina dorme, porque, afinal de contas, aos quatorze anos, nada é mais importante num sábado de manhã do que dormir, principalmente quando se acorda às cinco e meia todos os dias. Obviamente, não é esse o meu pensamento, pois, após os quarenta anos, nada me parece mais importante do que aproveitar bem acordada cada minuto que ainda tenho pela frente. E, das poucas certezas que tenho, a de que não posso perder meu tempo dormindo é uma das mais antigas. De repente, o menino pula da cama como um cabrito e anuncia que vai junto comigo, assim poderemos aproveitar e passar no camelô para comprar figurinhas difíceis do álbum de futebol. Certo, certo, nada mais justo, mas só se tomar todo o café e rápido. Combinados, saímos de carro rumo à Cidade. Seguir para o Centro no final de semana ainda é algo inusitado para um morador da Zona Sul do Rio, mas é um passeio fantástico. As ruas estão vazias e calmas e deixam a gente perceber a beleza de suas construções antigas. Até os nomes dos lugares parecem mais interessantes. Praça Paris, Avenida Mem de Sá, Escola de Música, Sala Cecília Meireles, Arcos da Lapa, Fundição Progresso, Rua do Lavradio (por que terá este nome?), sobrados aos montes, alguns com escoras e arruinados, outros bem cuidados e ainda belos. Ruas estreitas, lojas vendendo antiguidades, uma casa imensa com esfinges na porta e chegamos à rua do Senado. “É longe?” “Nadinha, filho, é aqui do lado. Vou estacionar e a gente vai andando. Olha só essa loja, quanta coisa antiga e cheia de história... Aquela cabeceira deve ter sido de alguém nobre, parente do Dom Pedro, pelos rococós...” “Que que é cabeceira? E rococó? E esse Dom Pedro, quem é?” E saímos andando pela rua, eu a explicar e ele a entender o que aquilo tudo significava. Andar por aqui é uma aula de história, uma viagem no tempo, um privilégio carioca.

Avenida Gomes Freire, número certo, é um prédio. “O elevador tá fazendo barulho de moeda. É assim mesmo, mãe?” “Barulho de moeda? Ah, tá tilintando, é verdade. Tem problema não, é que ele vai passando pelos andares e fazendo esse barulhinho. Vamos subir que já chegou.” E subimos. Tilintando. Devia ter ligado antes, nem sei se abre aos sábados... Só me falta essa. Paramos no andar certo, ok, cadê a sala, é pro lado de lá, isso, agora fica quietinho. Chegando à sala, encontro um balcão pequeno e vazio à minha frente. A parede atrás é uma vitrine para antigos instrumentos de sopro: um trombone, saxofones, flautas, cornetas, pistons, clarinetas. Quadros musicais com partituras e desenhos que nos remetem ao mundo da música enfeitam as paredes laterais. “Bom dia!”, chamei. E me chega o Reinaldo sorridente, perguntando logo como poderia me ajudar. Conto a saga toda, falo do meu avô e de toda a minha tristeza e finalmente tiro a viola do saco sem esperança. Reinaldo pega o instrumento com carinho, olha, vira, solta mais as cordas como que aliviando a dor do doente, e tenta colocar o braço do violão no lugar. Esforço inútil, a madeira está rachada e esgarçada, não admite ser contrariada. Mas Reinaldo é um otimista e me diz que conserto tem sim, que vai ficar como novo. Aliás, como novo não, porque já não há mais violões como aquele, de madeira de verdade, bonito daquele jeito. Quem consertará meu Gianini será outra pessoa, por isso ele não tem como passar o orçamento. Reinaldo anota meus dados, fica com meu cartão, preenche uma nota fiscal e me sorri como quem está há muito acostumado a passar o dia sozinho com vontade de conversar. Espero sim um tiquinho, já que ele quer me mostrar uma coisa, claro. O menino se impacienta, só pensa nas benditas figurinhas difíceis do camelô, mas eu estou curiosa e quero retribuir o otimismo do Reinaldo de alguma forma. Chego pertinho do pequeno: “Trate de se comportar, senão, adeus figurinhas!”

Logo volta o Reinaldo com uma sacolinha de papel bem fechadinha. E vai abrindo a sacola ao mesmo tempo em que me conta dos instrumentos incríveis que aparecem por ali de vez em quando. Cada raridade... Flautas de cinco chaves, belas como a que surgiu de dentro da tal sacolinha, toda desmontada. E foi montando a flauta diante de nós, encaixando as peças de metal escuro, contando com a gente cada chave, como que para garantir que tinha mesmo só cinco. Era uma coisa linda mesmo, de impressionar qualquer um. E aquela ainda ia ser restaurada, estava só esperando a sua vez. Contei-lhe mais sobre o meu avô, um artista - desenhista e pintor - de uma família com tradição nas artes. Falei do meu desapego em geral pelas coisas e do paradoxo que era o meu amor àquele instrumento diante desse desapego: minha vontade era preservá-lo para que o carinho do meu avô por mim pudesse ser lembrado para sempre.

Foi então que o Reinaldo me contou a história da outra flauta de cinco chaves que havia aparecido por lá uma outra vez. “O homem chegou aqui sem esperança, achando que a flauta não tinha mais jeito. Deixou a flauta para conserto. Foi embora triste e sem dizer mais nada. Quando veio buscá-la, algumas semanas depois, tal foi a sua felicidade ao ver a flauta tinindo e recuperada, que me contou a história inteira.” Disse-me então o Reinaldo que o homem lhe contara que a flauta tinha sido do filho, dada pelo avô do rapaz, sogro dele. Dissera que nunca teve o que reclamar dos sogros, ao contrário do resto do mundo, que dos seus normalmente só tem reclamação. Os dele eram pessoas do bem, melhores amigos, sempre ajudando a ele e à família. O sogro havia custeado os estudos do filho que se formou em música e a flauta tinha sido uma das coisas mais preciosas que do avô o menino tinha ganhado. E o homem fechara a história com o motivo da tristeza: já não tinha mais a companhia nem do sogro e nem do filho. Só lhe restara a flauta. Agora que a tinha recuperada, queria aprender a tocar. E o Reinaldo lhe indicou um professor. E o homem, além de flautista, virou grande amigo do Reinaldo.

A esta altura, eu derramava algumas lágrimas e o Reinaldo, através de seu olhar molhado e comovido, mostrava que entendia tudo de instrumentos cheios de história e que amava o que fazia justamente por isso. Então, voltei pra casa sem passar no camelô, a quem o menino desistiu de visitar depois de me ver chorosa. E, no caminho, vim me perguntando como uma rachadura num pedaço de madeira me havia levado a tudo isto. Meu lado matemático invocou a Teoria do Caos, mas a verdade é que o caos nada mais é senão a própria vida e vice-versa. Achei melhor deixar os cálculos de lado e seguir tecendo feliz o pequeno fio que me cabe na grande teia do caos nosso de cada dia, torcendo para que o celular toque sempre, trazendo-me notícias que me façam desenhar bordados tão belos quanto o deste sábado na complexa trama que é a nossa existência.

Nenhum comentário: