sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Crônica dos universos paralelos

Nutro a teoria de que as palavras se vão escrevendo sozinhas dentro da alma da gente e, quando estão crescidas o bastante para não poderem mais deixar nosso pensamento, começam a migrar para o mundo exterior, numa insólita viagem que termina na ponta dos nossos dedos. E, assim, se transformam em tudo o que lemos. Um milagre.

Pois estas começaram assim mesmo: dentro, graças a uma série de acontecimentos corriqueiros, mas inacreditáveis por terem ocorrido quase que simultaneamente: descobrir o paradeiro de amigos de escola através da Internet, encontrar fotos perdidas há anos, postá-las e imediatamente ser presenteada com depoimentos emocionantes e inesperados sobre como era vista por todos naquela época.

Foi um dia em que vários universos, paralelos por mais de vinte anos, convergiram numa impensável interseção patrocinada pelos milagres da tecnologia. Dias depois, ao combinar de rever esses amigos por tanto tempo distantes, encontrei apenas alguns e, juntos, ressuscitamos algumas das hilárias situações vividas no colégio, ilustrando nossas dramatizações com os mesmos gestos e trejeitos de então. Um levantar de sobrancelhas, um sinal da cruz, uma escolha de palavras, uma música lembrada... poucas coisas mudam em nós com o tempo. É verdade que o cabelo cai ou embranquece, os cachos se despedem, as bochechas murcham e os caninos e os narizes crescem, mas lá estava em cada um o mesmo jeito de falar, a mesma essência, a mesma alma, o mesmo universo.

E, para meu espanto, ao deixá-los depois de dois chopes e algumas águas, passei a catraca do Metrô para deparar-me com mais um. Lá estava a figura frágil de sempre, pasta enviesada pendendo do ombro, cabelinho ralo e desalinhado. Não sabia de encontro nenhum, ficou surpreso ao ouvir uma voz conhecida chamando seu nome, estava voltando do trabalho e coisa e tal, mas anote aí seu email, claro que lembro de você, mas tenho medo de entrar no Facebook, essas coisas podem ser perigosas etc... E foi assim que mais um que seguia seu rumo em órbita paralela foi sugado pelo ponto de fuga que capturou a todos nós nesses tempos místicos de final de outubro...

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Folclore

O anel que tu me deste era vidro e se quebrou.
O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou.

Contestar a sabedoria popular quem há de?

As possibilidades

Acabei de ouvir uma frase e tanto. "Somos vítimas de nossas possibilidades." - foi o que ouvi. E eu falava há pouco do meu desespero por viver, das milhares de coisas que quero fazer e que me escravizam e encerram na gaiola do possível. Posso tantas coisas, podemos todos, que a bola de ferro atrelada ao nosso tornozelo nos nega a liberdade do nada fazer. Em casa, quando deveria descansar, ando quilômetros e quilômetros, num vai e vem interminável de uma maratona ingrata onde a vencedora é a pessoa mais chata do mundo: guarda isso!, por que aquilo está jogado?, pendura a toalha!, tira o seu prato!, faz o dever!... No trabalho, posso ser a chefe mais durona, a profissional mais atualizada e requisitada, orgulhosa dos meus MBAs e congressos. Na segunda faculdade, realizo-me com um CR tardiamente alto, produto da maravilhosa coexistência do prazer (de aprender o que quero) com a obrigação (de assistir às aulas). Na piscina, alongo cada músculo rumo à braçada perfeita que me trará o tão desejado prêmio dos mil metros em menos de 19 minutos. E, assim, as possibilidades me tornam mais uma de suas vítimas, apresentando-se impune e cruelmente ao meu completo alcance. Num mundo onde tudo podemos, o difícil é a certeza do que realmente queremos.

A outra que escreve

Releio tudo e não me reconheço em minhas próprias palavras: eis o milagre do escrever. O blog ainda existe. Segue existindo bissextamente. Diferente, muito diferente de mim, que tenho vivido famintamente, numa louca guerra para materializar o tempo e prendê-lo em minhas mãos. Quero ser tudo e fazer tudo ao mesmo tempo e agora - porque o agora é o único tempo que me é permitido ter. Quero ler, escrever, trabalhar, amar, nadar, estudar, bronzear, dormir, rolar, mentir, confessar, surtar, melhorar, estragar e consertar, perdoar, tentar, errar e acertar, ensinar e aprender, mas, acima de tudo, viver agora, como se o agora durasse para sempre. I am stuck in a moment, a moment that lasts forever and in which everything can happen.